Um pouco por todo o lado surgem provas que desafiam a transcendência dos limites humanos. Desde travessias em auto-suficiência do Deserto do Sara (Maratona das Areias) até aquele que será o maior desafio de “endurance” – a “Transamérica Race” – 64 dias de costa a costa dos EUA, sem interrupções, em etapas diárias que variam entre os 45 e os 100 Km.
Contudo, aquele desporto que reúne, de forma exemplar, a urgência de ultrapassar os limites à versatilidade de várias disciplinas teve o seu início numa noite de copos em 1977. Num bar de Honolulu, John Collins, juntamente com outros “ex-marines” americanos, discutiam talvez inspirados pelos vapores etílicos das noites quentes, qual deles seria o melhor nadador, ciclista e corredor. Particularmente, em discussão estavam os méritos relativos daquilo que na altura eram três provas separadas: os 3,8 Km de natação de Waikiki, os 180 Km de bicicleta de Oahu e a maratona de Honolulu. Foi então que estes “marines” na reforma se decidiram a pôr estas três provas em conjunto. Em Fevereiro de 1978, 15 homens realizam aquele que era o primeiro triatlo “Ironman”. Gordan Haller, de 27 anos foi o primeiro vencedor, com 11 horas, 46 minutos e 58 segundos. Tinha nascido aquela que é talvez a protótipo actual das provas de desafio e versatilidade atlética – o triatlo.
O triatlo cresceu e com ele foram crescendo os desafios. Actualmente, dispomos já de aventuras que totalizam dois, três e mesmo quatro vezes as distâncias iniciais do “Ironman”. Onde estarão os limites?
Em 1992, Gonçalves a meio da prova nas areias do Sara comentava com um triatleta americano, que o “Ironman” comparado com aquilo era uma brincadeira. Bob concordou, e acrescentou: “O “Ironman” é um dia na praia!”.
Mas, mesmo os mais destemidos triatletas parecem autênticas meninas de coro quando comparados com alguns atletas que participam na corrida através da América. Nesta prova, por exemplo, o escocês Al Howie, um dos favoritos à partida, já havia percorrido cerca de 7300 Km através do Canadá em 72 dias, a uma média impressionante de cerca de 100 km por dia. Três semanas depois deste acontecimento ganhou a Sri Chinmoy Race numa distância de 2000 Km. Outro dos favoritos, era o alemão Helmut Schieke um veterano de 53 anos que havia vencido, três semanas antes e pela segunda vez consecutiva, o Campeonato da Europa das 24 horas. Contudo, a vitória não foi para nenhum destes dois, mas para o americano David Warady, que aos 35 anos completou a prova em 521 horas e 35 minutos. E a surpresa das surpresas, é que todos estes homens tinham outras profissões, famílias e muitas outras coisas com que se preocuparem. A vida deles é talhada nos princípios do desafio e aventura e é deste desafio aos limites que eles são verdadeiros amadores.
Andy Lovy, um psiquiatra e ultramaratonista que acompanhava esta prova, comentava a respeito do desafio que se impunha a estes homens na conquista de novos limites: “70% deste tipo de prova é corrida com a cabeça. Estes tipos não colocam barreiras mentais como a maioria das pessoas. Eles desfazem estas barreiras em pedaços (Runner`s World, 12-1992, p.87). É acerca dos aspectos psicológicos da transcendência destas barreiras que me referirei de seguida.
Geralmente, a maioria dos aspectos psicológicos ligados às experiências de transcendência dos limites, encontram-se no contexto daquilo que se pode designar de experiências de dissociação. Como é óbvio, não me referirei aqui às qualidades de dissociação psicopatológica. No presente contexto, o conceito de dissociação psicológica é utilizado para designar a possibilidade do indivíduo se abstrair de algumas dimensões da sua experiência actual para se focalizar em dimensões alternativas (quase que um outro estado de consciência!).
São quatro os fenómenos dissociativos essenciais na experiência de transcendência dos limites: 1) dissociação do espaço; 2) dissociação do tempo; 3) dissociação da dor; e 4) dissociação do corpo.
1) A dissociação do espaço – fenómeno segundo o qual, uma mesma distância adquire valores perceptivos diferentes na fenomenologia do corredor. Por exemplo, o valor de 100 Km para um corredor de ultramaratona tem um significado completamente diferente do mesmo valor para um indivíduo que nunca correu mais de 400 metros. Só há uma hipótese de sobreviver à tarefa de percorrer, 40, 50, 80 ou 100 Km. A estratégia é dissociar a noção de espaço. O espaço dos quilómetros da corrida não tem nada a ver com a objectividade das escalas métricas da vida comum. A métrica do corredor de fundo e ultrafundo é uma métrica psicológica. Há quilómetros que são bem mais longos que outros quilómetros… O atleta sabe, talvez melhor do que ninguém, que o espaço é relativo, de tal maneira relativo que por vezes as viagens de carro são tão longas que dá vontade de encurtá-las, saindo do carro e desatando a correr.
2) A dissociação do tempo – fenómeno de relativização dissociativa da percepção temporal. A necessidade de sobrevivência física e psicológica introduz um processo de distorção significativa no tempo, obrigando o atleta a dissociar-se da experiência temporal.
3) A dissociação da dor – fenómeno dissociativo de singular importância para a transcendência dos limites corporais. Numa prova que põe em desafio os limites do organismo humano é inevitável a ocorrência de sofrimento e dor. Tudo aquilo que pode doer vai doer. Numa prova de doze horas há momentos de grande leveza e tranquilidade, mas por vezes seguidos, imediata e abruptamente, por momentos de grande dor e sofrimento. O atleta que ultrapassa as barreiras de modo algum é aquele que não experimenta a dor, mas, pelo contrário, é aquele que a detecta, focaliza, limita e dela se dissocia num processo atencional de natureza hipnótica.
4) A dissociação do corpo – é um fenómeno de estranha flutuação em que os atletas conseguem dissociar-se do seu próprio corpo, e que se referem como ligar o piloto automático. Este fenómeno está associado aos efeitos dissociativos anteriores e caracteriza-se do seguinte modo: A) é experienciado como um estado alterado de consciência no qual é atingida uma invulgar ligação entre corpo e mente; B) há frequentemente uma sensação de intemporalidade; C) mesmo em exercício intenso, há uma sensação de ausência de esforço como se tratasse de estar a funcionar em piloto automático; D) tomar consciência ou tentar controlar este fenómeno, conduz frequentemente ao seu desaparecimento; E) a flutuação é algo que se pode permitir que aconteça, mas mesmo os atletas mais bem sucedidos relatam a sua incapacidade para produzir voluntariamente. Fenómenos como este, quando acontecem em corridas, estão habitualmente ligados a surpreendentes e transcendentes recordes pessoais como aquele que protagonizou Bill Rogers ao catapultar-se para a fama mundial, quando em 1975 venceu a maratona de Boston em 2:09:55, quando o seu anterior tempo na maratona eram uns modestos 2:19:34. Estas enigmáticas experiências surgem, por vezes, também durante os treinos.
Que razões levam os indivíduos a aventurarem-se em desafios limítrofes?
Como é habitual nos quadros explicativos das ciências, confrontam-se aqui várias teorias.
A Teoria Biológica explica este estranho “vício”, dependência e desejo por experiências desportivas de transcendência dos limites como uma dependência que o atleta desenvolve pelas sensações associadas à produção das suas próprias morfinas – as endorfinas. Sabe-se hoje que o exercício físico é altamente estimulante das nossas endorfinas e que estas explicariam em larga medida algumas sensações descritas pelos fundistas e ultrafundistas sob a designação de “runner`s high”. Assim, os efeitos da estimulação endorfínica fariam com que o atleta se tornasse um dependente cada vez mais exigente das suas próprias morfinas. É inegável que o exercício físico seja responsável por uma maior produção de endorfinas.
A Teoria Sociológica defende, e é hoje sabido, que a presença dos espectadores proporciona uma galvanização do atleta levando a que ele ultrapasse os seus próprios limites. Num estudo, relatado em tempos pela Runner`s World, uma rapariga atraente colocada estrategicamente nos jardins de uma universidade, aumentava significativamente a velocidade dos “joggers” masculinos que com ela se cruzavam. O efeito do reconhecimento social, em directo ou em diferido, é inegavelmente um factor motivador da grande importância para explicar o comportamento do atleta.
A Teoria Narrativa Psicológica defende que a vida pode ser conceptualizada como uma narrativa, um fluxo contínuo de acontecimentos com um início, um contexto, acções internas e externas, resultados e conclusões. Do mesmo modo, o nosso conhecimento vai-se estruturando como uma linguagem da nossa narrativa. Por outras palavras, damos significação à nossa vida através das narrativas que vivemos do passado e projectamos no futuro. A vida pode assim ser vista como a exploração de possibilidades e caminhos alternativos de aventura numa narrativa que se sucede ininterruptamente. Desta forma, o exercício físico encurta a distância entre aquilo que somos e aquilo que podemos ser, entre o nosso eu actual e o nosso eu ideal, entre a realidade e a aspiração. Esta Teoria Narrativa Psicológica explica esta exploração dos limites como o desejo contínuo de transformação pessoal, de ser aquilo que ainda não se é. Nesta perspectiva, a razão dos limites é a razão da própria vida, um processo de revolução contínua pessoal. Desta forma, o desporto fornece aventura, uma libertação eufórica do aborrecimento, tédio e falta de graça da vida doméstica quotidiana.
Jogar com os limites será uma forma de nos conhecermos, e este jogo, conforme defende Carse (1986), pode ser finito ou infinito. Os jogos finitos desenrolam-se com o objectivo último de ganhar e acabam quando alguém vence. Nos jogos infinitos as regras vão mudando de forma a impedir que alguém ganhe ou alguém perca e está bem como tal, o jogo não pode terminar. Em suma, enquanto os jogadores finitos jogam dentro de certos limites, os jogadores infinitos jogam com os seus próprios limites. Concluo assim com aquela velha máxima samurai que diz: “Treino exaustivamente porque não me comparo com ninguém, apenas com o melhor de mim mesmo”
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